quinta-feira, 19 de março de 2015

Na mira do pré-sal

Por Renata Bessi para o Portal da Pública 

Exploração do pré-sal no Espírito Santo ameaça áreas preservadas de litoral e coloca em risco a cultura e sobrevivência das comunidades tradicionais, especialmente no norte capixaba
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Foto: Renata Bessi
Ao sul da costa do Espírito Santo, no município de Anchieta, o pescador da Comunidade de Ubu, Adilson Ramos Neves, de 57 anos, que aprendeu o ofício com o pai e o avô, mostra como o dourado se movimenta nas águas para responder por que os empreendimentos do pré-sal afetam a pesca em todo o litoral capixaba.
“O peixe faz o seguinte… faz isso, ele vai e volta na costa, não tem uma toquinha no mar e fica ali parado, sabe … você veja bem… o dourado não é brasileiro, mas todo ano vem pra nossa costa, todo ano passa aqui: um grupo entra ali na Barra do Riacho [norte do Estado], na beira do barranco, que a gente chama, e daí ele desce, vem descendo sempre na beira do barranco…”. Barranco, ele explica, são “as partes do mar de 90 a 100 metros de profundidade, daí para fora a gente chama de profundo”.

“Então quando termina seu tempo de descer, lá por janeiro, ele sobe … e a sísmica [método que utiliza descarga de ondas sonoras nas águas para sondar a presença do petróleo no mar] está modificando o rumo do dourado ir e voltar. Antes ele vinha até 40-46 metros de profundidade, o que ficaria em seis milhas da costa. Hoje já não vem mais. Vem na base de 90-100 metros de profundidade e quando volta, volta pelo profundo. Tá diminuindo e os que conseguem chegar aqui tão vindo cada vez mais pelo profundo. É muita sísmica, é muita água remexida. Então, quando se mexe no mar aqui [sul] eles sentem lá [norte] e quando mexe lá sentimos aqui”.

De norte a sul, o Espírito Santo vem passando por um processo de transformação e de mudança de territorialidade intensificado a partir da descoberta do petróleo e gás na camada do pré-sal, anunciada há menos de 10 anos, em 2006. Estado pequeno em relação a outras unidades da federação, é no litoral que concentra sua maior área – são 411 quilômetros de comprimento na costa e cerca de 200 quilômetros de largura em direção ao interior.

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Foto: Renata Bessi
A extração comercial de petróleo e gás do pré-sal é feita desde 2010 na Bacia de Campos, ao sul do Estado, no chamado Parque das Baleias, que engloba os campos Baleia Azul, Jubarte e Baleia Franca, com operação exclusiva da Petrobras, de acordo com a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustível (ANP). Mas as mudanças trazidas pela exploração a grande profundidade (chega a 7 mil metros) no oceano afetam todo o território capixaba, uma vez que a extração de petróleo e gás gera uma extensa cadeia de produção e necessita de uma infraestrutura complexa – industrial, ferroviária, rodoviária, portuária.

“Para abastecer o boom petroleiro atual, suas plataformas, navios, dutos, instalações, alavanca-se em larga escala a mineração e a siderurgia, por exemplo. Bem como os setores de logística, naval, além dos complexos portuários, ferroviários e rodoviários. Cria-se uma rede de empreendimentos tanto no mar quanto em terra. E isso vem acontecendo em todo o território do Espírito Santo”, explica o professor e coordenador do programa de pós-graduação em Geografia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Cláudio Zanotelli.

Litoral habitado por comunidades tradicionais

Segundo a Agência Nacional de Petróleo (ANP), a demanda de investimentos para o pré-sal deverá superar 400 bilhões de dólares em materiais, sistemas, equipamentos e serviços até 2020. O impacto produzido pelos empreendimentos, porém, afeta de forma diferente a costa capixaba, menos explorada do que a dos outros estados, e com uma extensa área ocupada por indígenas, pescadores e quilombolas, como explica o
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Unidade de Tratamento de Gás – UTG Sul Capixaba. Foto: Renata Bessi
pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Populações Pesqueiras e Desenvolvimento no Espírito Santo, da Ufes, João Paulo Lizoton.

“Com a descoberta do ouro e pedras preciosas no estado de Minas Gerais no século 17, até o século 18, criou-se o que chamaram de barreira verde no Espírito Santo, proibindo o estado de abrir caminhos entre Espírito Santo e Minas. Então, principalmente o norte do Espírito Santo é de colonização muito recente que se intensificou apenas a partir dos anos 1950”, diz Lizoton. Ali existem muitas comunidades tradicionais – de indígenas, pescadores, remanescentes de quilombos. “Em São Mateus havia um porto que comercializava negros e muitos fugiam para a mata viver em quilombos. Ainda hoje existem comunidades remanescentes destes quilombos”, destaca o pesquisador.

Até o momento a exploração do pré-sal concentra-se no litoral sul, o que não significa que o norte do estado não esteja sendo atingido como exemplificou Adilson, o pescador da comunidade de Ubu. E há outros impactos mais diretos, como os já causados pela exploração do gás no pré-sal. Inaugurado em 2012, o gasoduto Sul-Norte Capixaba corta o estado a partir da Unidade de tratamento em Anchieta (sul) até Linhares (norte), onde haverá uma usina para transformar gás em metanol, por sua vez levado a Barra do Riacho – a 48 km de Linhares, para ser armazenado e escoado. Desde os estudos de implantação do projeto os pescadores reclamam de limitações à pesca e denunciam a destruição de corais e outras alterações no mar provocadas pelo gasoduto, com profundidade média de 60 metros.

O que é o Pré-sal

O pré-sal, de acordo com a Petrobras, é uma sequência de rochas sedimentares formadas há mais de 100 milhões de anos no espaço geográfico criado pela separação dos atuais continentes americano e africano. As grandes depressões entre os dois continentes deram origem a grandes lagos, que receberam grandes volumes de matéria orgânica depositados pelos rios dos dois continentes, que corriam para as regiões mais baixos.
À medida em que os continentes se distanciavam, os lagos foram sendo cobertos pelas águas do Oceano Atlântico, que então se formava. Dava-se início, ali, à formação de uma camada de sal, que chega a até 2 mil metros de espessura. Essa camada de sal depositou-se sobre a matéria orgânica acumulada, retendo-a por milhões de anos, até que processos termoquímicos a transformasse em hidrocarbonetos, petróleo e gás natural.
A área total da província do pré-sal chega a 149 mil km², estendendo-se entre os estados de Santa Catarina e Espírito Santo, o que corresponde a quase três vezes e meia o estado do Rio de Janeiro.

Os números

A produção nacional de petróleo no pré-sal cresceu 14,1% em outubro, comparado a setembro, alcançando 739,5 mil barris de óleo equivalente por dia (boe/d), de acordo com informe da ANP, divulgado em dezembro. Deste total, o Espírito Santo é responsável por 247.678 boe/d, o que representa 47,6% da produção total do estado, que foi de 519.925 boe/d – o Espírito Santo tem a segunda maior reserva de petróleo do Brasil e atualmente é o segundo maior produtor do país; só fica atrás do Rio de Janeiro, que produziu no mesmo mês um total de 1.812.249 boe/d.

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Terceira onda de desenvolvimento no Espírito Santo

O pré-sal é considerado como o terceiro ciclo de desenvolvimento na história do Estado capixaba; os dois primeiros foram o ciclo do café, na virada do século 19 para o 20, e o processo de industrialização do regime militar, que trouxe a exploração de minério de ferro e a indústria de celulose Aracruz, hoje Fibria, alimentada por grandes plantações de eucalipto.

“Desde o fim dos anos 1960 e início dos 1970 já se descobriu petróleo em terra no norte do Estado, fronteira com Bahia. Depois se descobriu gás e petróleo no mar. Os trabalhos envolvendo o pré-sal datam de um decênio para cá, quando se aceleraram as pesquisas de prospecção no mar. A partir de então, com a descoberta, o petróleo tomou uma dimensão para a economia do Estado que não tinha antes. Importância essa que antes era associada, do ponto de vista econômico, ao minério de ferro, ao aço e à celulose”, explica Zanotelli.

A nova era – da exploração de petróleo e gás – aparece bem delineada no Plano de Desenvolvimento do Espírito Santo para até 2030, resultado de uma parceria entre a Petrobras, a Secretaria de Estado de Economia e Planejamento (SEP), o Fórum das Entidades e Federações (FEF), o Espírito Santo em Ação, ONG que congrega as grandes empresas do Estado, e o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), vinculado à Secretaria de Estado de Economia e Planejamento (SEP) do estado do Espírito Santo. Segundo dados divulgados pelo IJSN, os investimentos anunciados para o estado, superiores a um milhão de reais, passaram a crescer intensamente a partir de 2010, coincidindo com a ênfase em petróleo e gás.
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Fonte: IJSN
“O crescimento extraordinário da produção de petróleo e gás no Espírito Santo trouxe o setor para o epicentro das questões vinculadas ao desenvolvimento econômico e ao futuro do estado. Esse setor se manifesta diretamente pelas atividades de exploração, produção, processamento, transporte e armazenamento de óleo e gás, e, indiretamente, pela cadeia de fornecimento de bens e serviços para a execução dessas atividades e da utilização potencial de tais produtos como matéria-prima de novos empreendimentos, gerando oportunidades para o desenvolvimento da economia. Há um vasto conjunto de atividades demandadas por essa indústria, tais como serviços de hotelaria, alimentação, transportes e logística, que serão beneficiados com essa atividade. Além disso, o adensamento do setor petrolífero possibilita o surgimento de novos setores dentro da economia local, como a cadeia petroquímica, de fertilizantes, naval e metalmecânica, de investimentos de alto valor agregado”, detalha o Plano.

Confira no mapa os elos da cadeia de petróleo:

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Investimentos vão de vento em popa

O relatório de investimentos para o Espírito Santo para 2010-2015, publicado em 2011 pelo Instituto Jones do Santos Neves (IJSN), lista uma série de 100 empreendimentos com valores superiores a um milhão de reais, concluídos entre 2008 e 2009. Os quatro principais são de responsabilidade da Petrobrás: perfuração, testes e exploração nos poços do Bloco BC-60 (Jubarte e demais poços) no município de Presidente Kennedy; início da primeira fase de produção do campo do Golfinho, em Aracruz; produção, com a instalação da plataforma FPSO Cidade de São Mateus (poços, linha de coleta, gasodutos marítimos e plataforma), em Linhares; ampliação da capacidade de Processamento de Gás Natural (UPGN) para 20 milhões m³/d (UTGC) na Unidade de Tratamento de Gás de Cacimbas, em Linhares. Veja a lista completa aqui.

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Porto da Vale na costa capixaba. Foto: Renata Bessi
Neste período (2008-2009), os investimentos concluídos no Espírito Santo somaram R$ 26,5 bilhões, distribuídos em 393 projetos. O investimento prioritário está na cadeia produtiva do setor de energia. A infraestrutura – que abarca produção de energia, terminal portuário, armazenagem, aeroportuário e transporte- recebeu 78,3% dos investimentos; a indústria, 14,2%; comércio, serviços e lazer, 1,9%; agroindústria, 0,5%. Já os investimentos classificados como “outros serviços” – saneamento, urbanismo, educação, meio ambiente, saúde e segurança pública –, receberam apenas 5,1% dos investimentos.

Também os investimentos públicos e privados projetados entre 2013 e 2018 estão diretamente vinculados à extração de petróleo e gás natural. O IJSN publicou em setembro de 2014 relatório sobre todos os empreendimentos acima de um milhão de reais projetados para esse período, que somam R$ 120,2 bilhões distribuídos em 1.278 projetos nos 78 municípios do estado. Novamente os chamados “outros serviços” ficam com apenas 5% dos investimentos projetados, enquanto 69,1% dos investimentos se destinam à infraestrutura (energia, terminal portuário, armazenagem, aeroportuário e transporte); à indústria, 18,8%; e ao comércio, serviços e lazer, 7%.

O segmento ‘energia’ acumulou o maior valor em investimentos no setor de infraestrutura, totalizando R$ 54,2 bilhões, o correspondente a 45,0% do total anunciado para o Espírito Santo no período. Esse montante deve ser aplicado em 67 projetos.

Embora o relatório afirme que 62% dos investimentos estão em fase de execução, correspondendo a R$ 74,5 bilhões do total anunciado, o relatório do IJSN traz uma lista de apenas 20 empreendimentos que estariam em execução, com uma breve descrição e valores. O setor de infraestrutura possui a maior participação de projetos em execução, com valor de R$ 58,6 bilhões (70,6%).

Os capixabas continuam sem informações oficiais transparentes sobre quais os empreendimentos que serão de fato implantados – e em que locais – o estágio das obras em execução e, principalmente, sobre os impactos ambientais e sociais dos projetos. “As empresas chegam silenciosamente nos territórios dois, três anos antes de começar um empreendimento para prospecção de áreas. Neste momento começam os impactos”, afirma a professora de pós-graduação em Ciências Sociais, da Ufes, Cristiana Losekann, que está fazendo uma pesquisa para mapear os empreendimentos. “Desenvolvem todo um trabalho com a comunidade, adquirem terreno, contratam funcionários, pois sabem que dificilmente serão barradas, mesmo que os impactos sejam enormes. Quando nos damos conta, o empreendimento já é fato consumado”, diz a professora.

Exatamente o oposto do que prega o Plano de Desenvolvimento 2030: “No que diz respeito aos processos de desenvolvimento induzidos pelo setor público, a exigência de nosso tempo é por governos ‘mais dialogados'; é por decisões tomadas no calor de assembleias. A cultura cívica exige participação de amplos setores da sociedade na construção dos processos sociais. Deliberação tomada a despeito de todos não gera comprometimento, não gera cultura cívica. Os bens públicos têm que ser queridos e desejados por todos, como já ocorre em inúmeras sociedades.”

“Na prática, deparamos com informações fragmentadas, difusas, desencontradas e decisões arbitrárias. Até mesmo os relatórios e estudos de impacto ambiental são fragmentados, pagos pelas próprias empresas que empreendem as obras. Nem todos são disponibilizados nos sites dos órgão ambientais, como, por lei, se determina que seja”, denuncia Losekann.
Um exemplo é o licenciamento de um empreendimento que deve armazenar material radioativo em um terreno que se localiza na região urbana do município de Serra. O material é resultado das extrações de petróleo no mar. No site do Ibama consta o número do processo (02001.002204/2013-23), mas não há nenhuma informação sobre ele. “Fragmentar as informações é uma estratégia para dificultar o entendimento do que realmente acontece no território”, sustenta Losekan.

De acordo com levantamento feito pela Frente Parlamentar Ambientalista, da Assembleia Legislativa do Espírito Santo, a partir de informações pesquisadas em relatórios e estudos de impacto ambiental já existentes, há trinta megaprojetos para a costa do estado entre portos, terminais, áreas de armazenamento de gás, óleo e minérios. Confira o mapa:

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Fonte: Frente Parlamentar Ambientalista do Espírito Santo

No território, o conflito

As comunidades tradicionais que resistiram até agora são a ‘bola da vez’ dos empreendimentos justamente por terem preservado seus territórios, avalia João Paulo Lizoton, da Ufes. “Para efetivar os projetos é preciso ocupar espaço. E esta ocupação não se dá sem conflitos. O espaço está em disputa. É uma disputa desigual, mas ainda assim é uma disputa”, diz.

É o que acontece no Pontal de Ubu, em Anchieta, no litoral sul do estado, onde desde 2010 o pré-sal do Parque das Baleias, na Bacia de Campos, é explorado. As praias de incrível beleza cênica, águas cristalinas e areia clara, compõem o território da Comunidade Tradicional de Pescadores Artesanais de Ubu e Parati. Adilson, o pescador que explicou como os empreendimentos estão alterando os movimentos do dourado, vive ali desde que nasceu.

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Comunidade Ubu, à esquerda porto privado da mineradora Samarco. Foto: Agência Pública/Renata Bessi
A exploração do Parque das Baleias foi ampliada em 2012 para incluir o pré-sal, e o projeto “Desenvolvimento Integrado da Produção e Escoamento da área do Parque das Baleias e Campo de Catuá” passou por novo licenciamento. Foi autorizado depois da apresentação de um Estudo de Impacto Ambiental Complementar, realizado pela empresa TerraByte S/S Ltda, pago pela Petrobras. A justificativa para o licenciamento, contida no relatório complementar, tem como base o fato de “as novas descobertas aumentarem em 124% a produção do Estado”. A nova plataforma entrou em operação em março de 2014.

O petróleo é escoado do parque por navios. O gás, por dutos. Um gasoduto submarino de 87 quilômetros atravessa o mar, passa pela Praia do Além, território pesqueiro, desembocando na Unidade de Tratamento de Gás Sul Capixaba (UGT Sul), a poucos quilômetros do Pontal de Ubu. Segundo a Petrobrás, a unidade visa a integrar a logística de infraestrutura “indispensável a viabilização de energia para as unidades industriais existentes e previstas, principalmente usinas termelétricas”. Foi a UGT Sul que produziu o primeiro volume de gás comercializado do pré-sal. Mas, enquanto a Petrobras comemorava o fato, os pescadores contabilizavam os danos para sua sobrevivência.

“Uma das primeiras lutas nossa foi em relação ao conflito criado no momento da instalação da Plataforma Itapuã, da Petrobras, em 2006, para a realização de estudos geotécnicos para a construção do gasoduto. Certo dia deparamos com a plataforma instalada na Praia de Tiquiçaba [que a Petrobras chama em seus relatórios de Praia do Além]. Tivemos materiais de trabalho destruídos pelo deslocamento da plataforma e nosso território de pesca limitado”, lembra o pescador Adilson Neves.

“A gente conhece tudinho aqui, o que tem debaixo d’água. As pedras, os rochedos, as rebentações, os berçários de peixe, onde eles se concentram. Para quem não conhece e vê de fora, parece que é só água, mas não, está cheio de vida”, explica o pescador. E aponta uma rocha: “Aquela pedra ali, por exemplo, a gente chama de pedra do nordeste, aquela rebentação ali. Fica a uns 500 metros para o norte e 800 metros fora da praia. Quebraram os corais tudo ali, onde peixes se multiplicavam. Encostada naquela pedra do porto ali também tem uma rebentação, cheia de cabeça [corais], acabou tudo”.

Os impactos trazidos pela instalação da plataforma não foram reconhecidos pela Petrobras, nem mesmo pelo Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do estado do Espírito Santo (IEMA). O que tornou ainda mais difícil a luta dos pescadores que sofriam com o desaparecimento de espécies nas proximidades da costa, como o polvo, e com os danos em equipamentos de pesca provocados por atividades relacionadas a estudos de viabilidade portuária encomendados por Petrobrás e Vale, cujos empreendimentos ainda não foram iniciados.
”Em 2008 conseguimos uma indenização pelos danos causados por conta do gasoduto. Ficamos quatro meses, de outubro de 2006 a fevereiro de 2007, sem poder pescar. Mas a indenização vai embora, assim como veio e os danos continuam ali”, pondera Neves.

Termo de Compromisso de Compensação

O Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema) do estado do Espírito Santo estabeleceu com a Petrobras um Termo de Compromisso de Compensação Ambiental da Unidade de Tratamento de Gás Sul Capixaba. A empresa teve que pagar R$ R$1.831.390,71 para duas Unidades de Conservação, uma em Guarapari e outra no município de Anchieta. Ficou decidido também que a Petrobras teria que incentivar a comunidade atingida pelo empreendimento, incentivo que os moradores locais negam ter recebido.

Sururus e tartarugas

Em Ubu e Parati há trechos de pontões rochosos, que fazem parte do costão de Anchieta à Guarapari, o ecossistema do sururu, também conhecido como marisco. É também ali que fica o complexo minerador da Samarco, controlada pelas duas maiores mineradoras do mundo – a BHP Billiton e a Vale S.A.-, que fornece pelotas de minério de ferro para a indústria siderúrgica de 20 países escoadas a partir de um porto privativo da empresa, o Porto de Ubu.

De tempos em tempos a empresa faz a dragagem do porto para possibilitar a locomoção dos grandes navios. Os sedimentos retirados do fundo do mar são depositados em áreas com a presença de peixes ou corais, prejudicando não somente a pesca mas também a reprodução de peixes e crustáceos, como explicam os pescadores.
“A dragagem, apesar de prejudicar o meio marinho, pois o fundo do mar é varrido, já é uma prática considerada até obrigatória. Mas, a pesca com rede de arrasto, por exemplo, é proibida com a justificativa de que ‘quebra’ os corais”, diz Adilson.

Em 2009, uma das dragagens da Samarco coincidiu com a perfuração das rochas na Praia de Tiquiçaba para instalação do gasoduto subterrâneo ligando o Parque das Baleias à Unidade de Tratamento de Gás – Sul Capixaba. “Todo dia a praia ficava forrada de sururu morto”, conta o pescador, embora não saiba explicar exatamente por que isso acontece.
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Anchieta: dutos da mineradora Samarco. Foto: Agência Pública/Renata Bessi
Nem a Petrobras nem o órgão ambiental do estado reconheceram o prejuízo causado, sentido concretamente pelas mulheres marisqueiras que há gerações fazem coleta de sururu na região. “Não encontramos mais sururu por aqui. Perdemos trabalho. Quem quer continuar com a atividade precisa se deslocar para as praias mais ao sul do Estado”, conta a marisqueira Marli de Oliveira Pereira. “O sururu morreu e até hoje não repovoou. O ouriço também tinha desaparecido e vemos que agora está começando a vingar de novo”, afirma.

A situação é alarmante já que a Bacia de Campos é extremamente rica em biodiversidade marinha. Várias espécies de mamíferos marinhos, como baleias, botos e golfinhos, podem ser avistadas na região. A baleia Jubarte cruza suas águas em direção aos bancos de Abrolhos. A baleia-de-bryde e a baleia-franca-do-sul também utilizam a Bacia de Campos como área de alimentação.

As ilhas do litoral sul do Espírito Santo são utilizadas como sítio reprodutivo de muitas espécies de aves marinhas, das quais se destacam duas espécies de andorinhas-do-mar. E a costa capixaba está classificada como área de extrema e muito alta importância biológica para as tartarugas. Todas as cinco espécies de tartarugas marinhas registradas ao longo da costa brasileira ocorrem na região: a tartaruga cabeçuda, a tartaruga verde, a tartaruga de pente, a tartaruga oliva e a tartaruga de couro. Os sítios de desova de tartarugas-marinhas concentram-se entre o litoral norte fluminense e o litoral sul do Espírito Santo, no trecho que abrange os municípios de Quissamã (RJ) e Anchieta (ES).

O Estudo de Impacto Ambiental Complementar alertou para os impactos das obras de expansão da produção do Parque das Baleias nessa região especialmente rica em espécies marinhas. Porém, garantia “as modificações esperadas no ambiente devem se restringir ao entorno das unidades, visto que as condições hidrológicas e meteorológicas propiciam uma rápida diluição dos efluentes e degradação dos resíduos”.

Não é o que observam os pescadores na Praia de Tiquiçaba, local de desova de tartaruga. “Este ano está difícil de subir tartaruga. Quantas estacas [locais identificados onde houve desova] você consegue ver ao longo da praia? Três. E estas que subiram não tiveram sequer força para enterrar os ovos, tivemos que ajudar”, conta Neves. “De setembro a janeiro isso aqui ficava forrado. A noite a gente passava aqui para pegar lagosta e via as tartarugas subindo para colocar os ovinhos. E muitas vezes a gente escuta de técnicos do Ibama que a culpa do desaparecimento das tartarugas é nossa, do pescador. Mas eles esquecem das sísmicas (testes que utilizam descargas de energia no mar para prospectar petróleo), das dragagens, perfurações, água de lastro de navios que é jogada no mar sem tratamento, das plataformas. Nada disso influencia o seu desaparecimento?”, pergunta o pescador.

“Com a corrente marítima nossa, esta que estamos, em novembro, dezembro, o peixe vinha pela costa. A gente tinha rede aqui da pontinha daquele barranco ali … tá vendo onde tá meu barquinho … até aquela rebentação mais a frente, até aquela lagoa ali … o pescador tinha dois, três lances de rede. Hoje já não tem mais. Se isso não é impacto, então não sei o que é”, sustenta Neves.
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Identificação da área de desova de tartarugas marinhas na Praia do Além em Anchieta. Foto: Agência Pública/Renata Bessi
Isca para pegar pescador

O relatório complementar reconhece o turismo e a pesca artesanal como principais atividades econômicas de Anchieta. “A pesca marinha é dominada pela atuação da frota artesanal e pela utilização de artefatos de linha, como o espinhel e alguns tipos de rede de emalhe e de arrasto. As pescas de espinhel de fundo são geralmente utilizadas para a captura de espécies que vivem associadas ao fundo marinho. Entre as espécies mais capturadas destacam-se: peroá, olho-de-boi, pampo, dourado, tainha atum, lagosta, camarão, pescadinha, corvina, cherne, garoupa, enchova, robalo, baiacu e cação”.

Entre os principais impactos, o estudo relaciona: alteração das características do sedimento do fundo oceânico, alteração da qualidade do ar, interferência no ambiente por descarte de efluentes orgânicos (esgoto sanitário e resíduos alimentares), interferência no ambiente pelo descarte de água de produção, interferência no ambiente pelo descarte de efluentes da Unidade de Remoção de Sulfatos, interferência no ambiente por descarte de água de resfriamento, alteração da comunidade bentônica, interferência na atividade pesqueira devido ao estabelecimento de uma zona exclusão de pesca. E como impactos acidentais: alteração de ecossistemas costeiros e contaminação ambiental por produtos químicos e óleo.

Ainda assim, o estudo se posiciona favoravelmente ao empreendimento, argumentando que “dos impactos negativos, relacionados ao meio físico e meio biótico, 75% deles são temporários e reversíveis”. E avalia que as unidades de produção instaladas no mar poderão atrair comunidades de peixes para o seu entorno em busca de alimento e refúgio. “A atração de cardumes poderá intensificar as interações com as atividades de pesca”, diz o estudo.

 Não deixa de ser verdade, concorda Neves. Mas para atrair os peixes, explica, “o barco tem que chegar bem perto da plataforma com uma iluminação muito boa e de noite. Depois deve sair com motor bem lento, jogando iscas e atraindo o cardume até 500 m [em alguns lugares chega até 3 mil] da plataforma para poder pescar, que é a área de exclusão. Mas nesta aproximação a gente leva 1600 reais de multa. O pessoal da plataforma fotografa e manda o registo para a capitania dos portos e ela nos notifica da multa”.

Para os pescadores, o “progresso” trazido pela exploração do pré-sal trouxe apenas sofrimento. “Ubu era para ter rua de prata com tanto petróleo e gás. Mas o que temos? A lagoa tá contaminada, o sururu morreu, marisqueiras sem trabalho, quase não temos mais tartarugas, diminuição de peixe e nosso território de pesca cada vez mais reduzido. O que temos é empreendimento atrás de empreendimento e impacto sobre impacto”, lamenta.
A Petrobras, via assessoria de imprensa, sustenta que “como os reservatórios do pré-sal no Espírito Santo se concentram no chamado Parque das Baleias e a cerca de 80 km da costa e não houve instalação de novos empreendimentos em terra para atendimento dessa produção, não há que se falar em impactos específicos da produção do pré-sal no estado”.

Rumo ao norte capixaba

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O gasoduto corta o território de 27 comunidades pesqueiras. Como área de influência – aquelas afetadas direta ou indiretamente pelo empreendimento – foram consideradas todas as comunidades presentes no litoral do Espírito Santo, com exceção de São Mateus e Presidente Kennedy.

A atividade de pesca é uma das mais expostas aos impactos do empreendimento, segundo o Relatório de Impacto Ambiental (Rima), contratado pela Petrobras à empresa Cepemar Consultoria em Meio Ambiente Ltda, realizado em 2011. “As áreas de abrangência de instalação dos dutos são exploradas por uma frota artesanal permanente, que utiliza a região com uma frequência diária ou semanal, e outra frota industrial flutuante e variável, que utiliza a região com frequência sazonal”.



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Fonte: RIMA
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Terras capixabas cortadas por dutos. Foto: Agência Pública/Renata Bessi
De acordo com o pescador Manoel Bueno dos Santos, presidente da Federação das Associações de Pescadores e Aquicultores do estado do Espírito Santo, cuja entidade representa 68 associações, existem 16 mil pescadores no Estado. Além disso, 70 mil famílias vivem direta ou indiretamente da pesca. “A pesca artesanal tem um significado importante para a economia do Estado. Estimamos que cerca de 60% do pescado que chega às mesas dos capixabas vem da pesca artesanal”, afirma ele.

Tamanha concentração de pescadores é justificada pela riqueza do local, com formações de algas calcáreas (bancos de rodolitos) em grande parte de sua extensão, abrigando alta diversidade de peixes, invertebrados (estrelas do mar, anêmonas, esponjas, corais, crustáceos etc) e macroalgas.

No fundo do mar vive uma grande diversidade de espécies: crustáceos (camarões e lagostas), poliquetas (minhocas-do-mar), moluscos (ostras) e equinodermos (ouriços e estrelas-do-mar). “Alguns desses organismos encontram-se ameaçados, como a lagosta da espécie Munida sp., a estrela do mar Astropecten marginatu, o ouriço satélie (Eucidaris tribuloides) e o ouriço da espécie Cassidulus mitis. Isso determina um nível de sensibilidade ambiental maior para a região”, cita o Rima.

O relatório detecta ainda a ocorrência de 638 espécies de peixes, das quais 113 são de interesse comercial e 57 encontram-se em alguma categoria de importância para conservação. Além das espécies de tartarugas já citadas, podem ser encontrados na região ainda baleias, botos, golfinhos e várias aves marinhas.

Contaminação ambiental e interferência na biota marinha, vazamento acidental de condensado ou óleo diesel no mar são apontados como fatores de grande impacto. “Pelo fato de se instalar uma série de equipamentos e tubulações no fundo do mar, a suspensão das partículas e o soterramento de alguns bichos gerarão uma interferência na comunidade de organismos que vivem no fundo do mar (comunidade bentônica). Os peixes e demais organismos marinhos também poderão sofrer essa interferência (…)”, descreve o relatório.

“Nos afeta a diminuição do território da pesca, seja pelas áreas de exclusão ou pela ocupação de espaços pelos empreendimentos. Mas o principal impacto é a contaminação das águas e o desaparecimento dos peixes. Porque sem peixe ou com peixe contaminado não vivemos”, afirma o pescador Santos. E “não vão poder dizer que não avisamos, porque denunciar é o que mais temos feito em várias instâncias de governo e nos órgãos ambientalistas”, alerta. “As lideranças dos pescadores, que ocupam estes espaços de participação, têm uma idade média de 50 anos. São pessoas amadurecidas que conheceram o antes, conhecem como está hoje e a forma como chegará no tempo mais adiante, temos esta visão. Estamos dizendo através da nossa prática, de quem vive das águas … estamos passando isso pra esta gente que está no comando, mas precisam querer ver e escutar”, conclui o pescador.

Em Linhares, a Unidade de Fertilizantes Nitrogenados

Ainda em Linhares, o gás natural será a matéria-prima básica de um empreendimento da Petrobras para a síntese de amônia e metanol. É o Complexo Gás-Químico Unidade de Fertilizantes Nitrogenados 4 (UFN 4), previsto para ser iniciado em 2017. O objetivo é produzir fertilizantes e produtos derivados do gás natural como metanol, ácido cético, ácido fórmico e melanina. A justificativa para a implantação do complexo é a necessidade de suprir a “deficiência nacional”, conforme citado no Plano de Desenvolvimento do Espírito Santo 2025: “A balança industrial da petroquímica vem sendo cronicamente deficitária. Faz se necessário uma retomada do desenvolvimento petroquímico nacional”.
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Mapa do empreendimento UFN4
A área em que a Petrobras pretende instalar o empreendimento, a cerca de 20 quilômetros do centro de Linhares, é conhecida como Palhal. Ali vive uma comunidade camponesa. As famílias estão sendo pressionadas desde 2011 para que vendam suas casas. O Relatório de Impacto Ambiental da UFN-4, feito pela consultoria Bourscheid Engenharia e Meio Ambiente SA, pago pela Petrobras, descreve a área como local de pastagem, desconsiderando a presença de famílias que ali habitam.

Ao longo dos últimos três anos a área foi sendo dominada pela Petrobras. A antiga Estrada do Palhal já é conhecida como a Estrada da Petrobras.
“Você pode ver, as correspondências, os documentos oficiais ainda a gente recebe com o nome da Estrada do Palhal”, afirma Sebastião Freitas, um dos poucos que ainda resistem no local, e que possui a escritura de suas terras.

Das 30 famílias da comunidade, apenas cinco ainda resistem, segundo Freitas. A comunidade ainda possui um mercadinho, uma escola primária, e duas igrejas, uma católica e uma assembleia de Deus. “Não é à toa que as pessoas foram saindo. Logo em 2011 a pressão era muito grande. Vinham carros cheios aqui, com advogado, gente que parecia importante, pressionando pra gente vender as terras. Achavam que iam me expulsar pelo medo”, conta. “Olha, não se diziam da Petrobras, não. Se identificavam como gente do Estado. Diziam que era venda para desapropriação. Agora vai saber a relação desta gente com a Petrobras”, conta Freitas, de 61 anos dos quais 56 vividos na comunidade.

Nas terras abandonadas sobram ainda pés de jaca, mangueira, laranjeira, plantações de café e milho. “Conforme eles adquiriam as terras, a primeira coisa que faziam era botar a casa no chão. Uma estratégia para ninguém mais voltar”, afirma. As terras de Freitas sobrevivem à beira da Estrada do Palhal. “As que eles foram comprando já foram cercando. São cerca de 82 hectares”, conta. “Daqui eu não saio”.

Já em relação aos impactos ambientais, a lista indicada pelo estudo é considerável. Impacto sobre o uso da água no Rio Doce (para suprir a demanda de água a ser utilizada nos processos do Complexo será projetada uma estrutura de captação de água no Rio Doce, com vazão de captação de 2000 m³/h), emissão de poluentes atmosféricos, perda ou diminuição do uso de áreas agriculturáveis, alteração da qualidade da água; alterações, fragmentação e redução nas áreas de formações florestais nativas, interferência em áreas de preservação permanente (APP), perda ou fragmentação de habitats para a fauna e alteração na qualidade das águas subterrâneas e do solo por derramamento de substâncias químicas.

Além disso, a área de preservação permanente do Rio Doce será interceptada pelos dutos de captação de água e descarte de efluentes no rio. O Rio Riacho será interceptado pelo duto de metanol.

Questionada sobre os impactos previstos pela implantação da UFN4 e se é de conhecimento da empresa que há comunidade no local sendo atingida, a Petrobrás respondeu: “O Polo Gás-Químico de Linhares (ES) permanece na carteira de projetos em avaliação do Plano de Negócios e Gestão 2014-2018 da Petrobras”. A reportagem ligou então para a empresa que, por meio de sua assessoria de imprensa, respondeu que o projeto ainda está sendo avaliado e que, portanto, não há impactos.

Metanol na barra do riacho

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Fonte: RIMA
O escoamento de 70% do metanol produzido na UFN 4 será feito por navios químicos. Para tanto, um duto com extensão de cerca de 70 km foi previsto para interligar o Complexo ao mar na chamada Base de Apoio de Barra do Riacho, no município de Aracruz. No percurso, o duto passa pelas Terras Indígenas de Comboios e Tupiniquim.
O Relatório de Impacto Ambiental do empreendimento minimiza o problema justificando que “as aldeias inseridas nestes territórios encontram-se distantes das estruturas do empreendimento”, desconsiderando que o território indígena não é apenas o lugar de morada.

Na Barra do Riacho, ficam os tanques para expedição de metanol, no local denominado de Base de Apoio da Barra do Riacho (BABR), onde chega o duto de metanol e o Terminal Gás Natural Liquefeito (GNL) de Barra do Riacho (TBR), que recebe os navios GNL e a regaseificação. De acordo com o relatório de investimentos concluídos no Espírito Santo, do IJSN, publicado em dezembro de 2014, os empreendimentos foram concluídos em 2013.

Barra do Riacho: ilhada por empreendimentos

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Barra do Riacho: pescadores se preparam para pesca. Foto: Agência Pública/Renata Bessi
Barra do Riacho é um povoado fincado no ponto em que o Rio Riacho desemboca no oceano Atlântico. Novamente a ocupação tradicional e principal fonte de renda das famílias é a pesca artesanal. Ali, o pescador criou uma cartografia própria das águas salgadas, dos rios, dos bosques. Não está no papel, mas na memória de cada um. O mapa, com nomes tradicionalmente criados, passa de geração a geração.

As lamas submersas, por exemplo, são locais específicos de pesca no mar com rica biodiversidade e nomes relacionados às suas características: Lama da Moita Grossa, Lama do Cavalinho, Lama do Rio Doce, Lama do Córrego, Lama da Concha, Lama do Bocação (boca de cação), Mãe Chuá Espiando (dali se avista um morro atrás do outro e conforme se avança com o barco a impressão que se tem é de que o segundo está espiando o mar).

 Entre Barra do Riacho e Barra do Sahy, pequeno espaço da costa capixaba de no máximo seis quilômetros de extensão, havia uma densa Mata Atlântica, com águas povoadas por lagosta, camarão, golfinhos, baleias, tartarugas marinhas e inúmeros tipos de peixe. “Peixe galo, peroá, cação, pescado, baiacu, o badejo. Todos estes peixes a gente pegava na beira da praia com uma canoa”, lembra Messias Agostino Cordeiro, de 87 anos, um dos pescadores mais antigos da Barra do Riacho. “No tempo do meu pai, até o mês de agosto de todo ano, a gente só pescava no rio (Rio Riacho) … era só robalo. Era o rio do Robalo”, lembra ele.

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Foto: Renata Bessi
Esta imagem descrita por Cordeiro é a Barra do Riacho até a década de 1970, quando a Aracruz, hoje Fibria, chegou à região, com suas empresas de celulose e as plantações de eucalipto que substituíram a Mata Atlântica. Por décadas a porta de entrada de Barra do Riacho tem sido o odor forte do processamento da pasta de celulose, que causa tontura e enjoo nos desacostumados. “Até hoje jogam a água contaminada do processamento da pasta no mar. Mas o que é mais triste é que perdemos quatro rios: Santa Joana, Rio Riacho, Rio Pavô, Rio Juruna. Eles foram represados para facilitar a captação de água pela Aracruz”, diz Cordeiro.

Outras empresas relacionadas ao processamento da pasta também vieram para a região entre Barra do Riacho e Barra do Sahy, como a Degussa que fornece água oxigenada para branqueamento da celulose, além de dois portos particulares, o Portocel, da Fibria, e o da Petrobras.

Depois de 2006, começaram a chegar os empreendimentos relacionados ao pré-sal. Além da estrutura para receber o metanol da UFN 4, outros quatro estão em processo de construção. Na margem direita do Rio Riacho, em direção à Barra do Sahy, estão o estaleiro Jurong, para construção e reparação de plataformas e embarcações que devem ser utilizadas no pré-sal; o Imetame, terminal portuário já licenciado para atender plataformas marítimas da Petrobras; Portocel II, a expansão do porto da Fibria, com licença prévia do Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema-ES). Na margem esquerda do rio, está previsto o projeto do Terminal Multimodal Nutripetro, em processo de licenciamento, que dará suprimento a plataformas de petróleo.


A única área da cidade, localizada na margem esquerda do rio, garantida pelo Plano Diretor da cidade para habitação, acaba de ter sua destinação modificada, em votação na Câmara de Vereadores de Aracruz, para área industrial. No local será construída a Nutripetro. “Estamos prensados. Os empreendimentos cercaram Barra do Riacho. Não temos mais para onde crescer. A única solução é a gente ir embora daqui. Quem tem condição vai, não fica”, constata Cordeiro. “Não, não quero que meu filho seja pescador. Não há futuro para pesca aqui em Barra do Riacho”, lamenta.

Veja mapa dos empreendimentos:
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Fonte: Site da empresa Nutripetro
Jurong: a batalha judicial do estaleiro

O início das obras do Estaleiro Jurong Aracruz (EJA), de Cingapura, em dezembro de 2011, para atender aos investimentos no mercado naval, mereceu a presença do então governador do Espírito Santo Renato Casagrande, da então ministra capixaba Iriny Lopes, além de várias autoridades do estado. Fornecedora da Petrobrás desde 1996, a empresa já construiu e converteu plataformas de onde se extrai cerca de 40% da produção offshore (em alto mar) da Petrobras. Em Aracruz, o foco principal da empresa é o fornecimento de sondas de perfuração e de navios plataforma para os campos do pré-sal. A assessoria de imprensa da Jurong informa que a construção do estaleiro gera hoje 1167 empregos diretos e 2.384 empregos indiretos (empresas terceirizadas). As obras devem estar concluídas no final deste ano.
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Foto aérea da Jurong (Fonte: Assessoria de imprensa da Jurong)
O Ministério Público, porém, questionou judicialmente o estaleiro – da aquisição das terras ao licenciamento ambiental. A área onde o empreendimento está sendo construído é uma concessão da prefeitura de Aracruz, formalizada por meio da lei municipal 3.268, sancionada em 29/12/2009. Essa lei declarou a área de 825 mil metros quadrados de utilidade pública para fins de instalação de empreendimento industrial e, através de seu artigo 4º, transferiu o terreno de forma gratuita ao Estaleiro Jurong Ltda. Antes disso, a área havia sido colocada à venda por R$ 25 milhões a Jurong.

Em 2010 a Associação Capixaba de Proteção ao Meio Ambiente (Acapema) e a Associação das Empresas de Turismo de Aracruz (AETA) fizeram uma denúncia ao Ministério Público Estadual (MPE) alegando doação irregular de área pública para a construção do estaleiro. A juíza Trícia Navarro Xavier, da Fazenda Pública de Aracruz, negou no entanto o pedido de liminar do MPE, pedindo o cancelamento das doações de terras feitas pela prefeitura a Jurong.

Por sua vez, a diretora-presidente do Instituto Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema), Sueli Passoni Tonini, em audiência pública em fevereiro de 2010, disse que o Iema estava dando um tratamento diferenciado ao processo de licenciamento do estaleiro por se tratar de “uma concorrência” entre os estados brasileiros. “As características desse empreendimento interessam ao estado; serão gerados uma quantidade significativa de empregos mesmo depois na Operação. Vai diversificar a economia do Estado, será de longa duração”, disse a presidente do Iema, conforme registro em ata.

Em fevereiro de 2010, a área técnica do Iema rejeitou o EIA/RIMA e manifestou-se contrariamente à instalação do empreendimento no local pretendido. Mas a presidência do IEMA, discordando do setor técnico,anexou ao processo de licenciamento ambiental um “contra-parecer técnico”, elaborado pela empresa de assessoria ambiental paga pelo Estaleiro Jurong, e submeteu o parecer à Câmara Técnica de Licenciamento de Grandes Projetos, Estudo de Impacto Ambiental e Compensação Ambiental do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema). Os dois pareceres então foram encaminhados para deliberação do Conselho Regional do Meio Ambiente III (Conrema III). No mesmo mês de fevereiro, o Conselho concedeu a licença ao empreendimento.

A decisão do juiz

O Ministério Público Federal (MPF) propôs então a Ação Civil Pública, de número 2010.50.04.000184-3, pedindo a anulação da licença para o projeto argumentando que o estudo de impacto ambiental apresentado pela empresa “é superficial, não apresentando sustentabilidade para embasar e fundamentar a concessão da licença prévia”. O juiz federal substituto Gustavo Moulin Ribeiro, da Vara da Justiça Federal de Linhares, em 2011, negou o pedido do MPF apesar dos impactos listados pelos procuradores: destruição do litoral rochoso constituído por concreções limoníticas (formações de arenitos), manguezais marítimos e estuários com grandes extensões de manguezais preservados. De acordo com a ação civil, a região também é local de reprodução de espécies raras e endêmicas, área de distribuição e reprodução de espécies ameaçadas (cetáceos e quelônios), e sítio geográfico de transição zoológica, botânica e geográfica de tropical para subtropical.

Isso embora o juiz tenha reconhecido na sentença que “trata-se de empreendimento de significativo impacto ambiental de âmbito regional/nacional, que visa ocupar e intervir drasticamente em parcela do mar territorial brasileiro (mediante a dragagem de milhões de metros cúbicos de areia, sedimentos e rochas e construção de molhes, quebra-mares e diques)”, incluindo impactos que “potencialmente atingirão a Unidade de Conservação Federal de Proteção Integral ‘Reserva Biológica de Comboios’, a recém criada Unidade de Conservação Federal de Proteção Integral ‘Refúgio da Vida Silvestre de Santa Cruz’ e a recém criada Unidade de Conservação Federal de Uso Sustentável ‘Área de Proteção Ambiental Costa das Algas’”.

No projeto original, de 2006, o limite norte da “APA Costa das Algas” abrangia o local em que o Estaleiro Jurong pretendia se instalar, como detalha a sentença do juiz. Depois de quatro anos parado, o então governador do Espírito Santo, Paulo Hartung, enviou um ofício em março de 2010 para a então chefe da Casa Civil da Presidência da República, Dilma Rousseff, solicitando a retomada do processo de criação das unidades de conservação de forma que possibilitasse “garantir a convivência harmônica entre os empreendimentos constantes do leque de oportunidades econômicas, para as quais está vocacionada a região, e as restrições relativas àquelas atividades que utilizam tecnologias incompatíveis com a proteção do ativo ambiental existente na região”, escreve o juiz.

Como resultado desse diálogo, foram editados dois decretos presidenciais em 17 de junho de 2010, publicados no Diário Oficial da União do dia 18 de junho de 2010, por meio dos quais foram criadas as unidades de conservação federais ‘REVIS de Santa Cruz’ e ‘APA Costa das Algas’. “Os decretos presidenciais efetivamente alteraram os limites propostos para as unidades de conservação, de modo que o local em que o EJA (Estaleiro Jurong Aracruz) pretende se instalar encontra-se atualmente fora da área de proteção ambiental federal”, concluiu Ribeiro.

O juiz também se declarou convencido da validade do EIA do empreendimento, definido como “um estudo denso, de mais de 2,5 mil laudas”, além de destacar na mesma sentença que o estaleiro “asseverou que foram respeitados todos os trâmites administrativos e legais para obtenção da Licença Prévia, tendo o estudo ambiental sido elaborado por empresa de reconhecida idoneidade no mercado de consultoria ambiental, contando com a participação da população, inclusive com audiências pública”. E ressaltou “os ganhos econômicos” para a região, afirmando que a única forma de preservar a área seria torná-la uma Unidade de Conservação de proteção integral, o que, segundo ele, não é a intenção dos governos. “Os Poderes Executivos federal, estadual e municipal, dentro da discricionariedade administrativa que lhes é própria, intentam transformar toda a região em torno do empreendimento em área industrial”, escreveu.

Por fim, mesmo considerando o empreendimento legal, defendeu “a aplicação dos princípios do desenvolvimento sustentável e do poluidor-pagador”. Assim, “deverão ser exigidas do empreendedor tantas condicionantes quantas forem necessárias para que se obtenha um ganho ambiental quantitativo e qualitativo, em comparação ao que foi (ou será) degradado”, afirmou.

Em setembro de 2010, o governador do estado do Espírito Santo, Paulo Hartung, reconheceu o estaleiro como de utilidade pública, por meio do Decreto nº 1158-S, publicado no Diário Oficial. Com o decreto se garante a construção do estaleiro na área sem possibilidade de contestação.

Questionada, a empresa respondeu através da gerente de Segurança, Meio Ambiente e Saúde (SMS) do Estaleiro Jurong, Lani Tardin. Segundo ela, a empresa cumpriu “um rigoroso processo de licenciamento ambiental”, de acordo com todas as normas e leis. “Os impactos em área marinha, como previsto nos estudos ambientais, estão sendo monitorados e mitigados”, afirmou.

Tardin disse ainda que, como compensação pelas áreas desmatadas, a Jurong comprou a fazenda Fortaleza que ficava dentro das unidades de conservação federais ‘REVIS de Santa Cruz’ e ‘APA Costa das Algas’ para facilitar a recuperação da mata original.

Sem berçários, sem camarão

Com o apoio do MPE-ES, os pescadores artesanais conseguiram na Justiça que o estaleiro Jurong assinasse um Termo de Compromisso Ambiental (TCA) prevendo o pagamento de R$ 1,5 milhão como forma de compensação à comunidade pesqueira para o desenvolvimento de projetos. Além disso, no licenciamento ambiental, segundo a gerente da Jurong, estão previstas medidas de compensação aos pescadores: agregação e valorização do pescado, oferecimento de cursos, implantação de estrutura de embarque e desembarque para os pescadores e aparelhamento dos estaleiros da comunidade.
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Barco de pescador em zona ameaçada. Foto: Agência Pública/Renata Bessi
De acordo com a assessoria de imprensa do estaleiro, foram estabelecidas 150 condicionantes para o empreendimento, tanto na área ambiental quanto na social. Uma delas é o programa que oferece a estudantes do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes) um processo de formação em engenharia naval em Cingapura.

Para os pescadores, porém, isso não compensa a perda ambiental. “A gente tinha uma lama aí bem onde foi construído o estaleiro, o melhor do camarão sete barbas dava ali. Foi retirada para aumentar o fundeio de modo que os barcos grandes possam passar”, conta o pescador da Barra do Riacho, Antonio Carlos Miranda.

“Cada empreendimento que vem acaba com nossas lamas pesqueiras, com os berçários. Você sabe que as espécies migram, emigram e imigram … vem e vai … se vem de fora como vai ter condição para que reproduza se não tem lama? Tem que ter território, um ambiente adequado para receber estas espécies, senão acaba”, completa o pescador Marinalvo Miranda Gonçalves.

Para quê mesmo?

A prerrogativa do desenvolvimento permeia todos os relatórios de impacto ambiental analisados pela reportagem. “Cria-se as chamadas zonas de sacrifício, regiões onde tudo deve ser tolerado em nome do progresso e do desenvolvimento nacional”, avalia a professora Cristiana Losekann. “Pelo que temos pesquisado, o desenvolvimento baseado em recursos naturais, com impacto direto em comunidades tradicionais, vem gerando conflitos enormes nos territórios e não temos dúvida de que vão aumentar na mesma proporção que estes projetos vêm se multiplicando. Observamos isso em toda a América Latina”, afirma a professora da Ufes.

De acordo com o professor Cláudio Zanotelli, também da Federal do Espírito Santo, existe hoje um excedente de capital global que precisa ser aplicado para gerar mais lucro. “Um importante investimento é em infraestrutura urbana e em grandes empreendimentos. E, evidentemente, a exploração do petróleo e os investimentos em toda cadeia ligados a ele se inserem neste contexto. Busca-se investir e produzir mais valor nestes territórios. O Estado incentiva, as empresas vão chegando, os espaços vão sendo transformados”, explica.

Os professores também ressaltam a dificuldade de conseguir informações sobre projetos e empresas que provocam mudanças radicais nos territórios já ocupados pelas comunidades tradicionais. “É tudo obscuro. Sabemos, inclusive, que, com o petróleo, nosso estado está sendo invadido por multinacionais, mas dificilmente conseguimos mapeá-las, já que precisam abrir uma empresa no Brasil para poder operar. Há um jogo geopolítico que percebemos, mas que ainda nos ultrapassa o entendimento. Estamos em processo de desvendar toda esta cadeia de produção do petróleo e toda a indústria de infraestrutura que se forma em torno desta produção”, avalia Cristina Losekan. “Mas com certeza estamos em processo de transformação territorial, delicado em termos social, econômico e ambiental”, afirma.

E os impactos ambientais não atingem a todos da mesma forma, destaca a professora. “Afetam mais aquelas pessoas que já estão em situação de desigualdade, seja econômica ou étnica. E a alternativa que sobra para elas é se colocar de forma mais propositiva no sentido de ir para o confronto. Se não for assim, vão ser dizimadas silenciosa e lentamente”, explica, questionando os benefícios que a exploração do petróleo traz para a população: “Não dá pra dizer que o petróleo está sendo explorado para sustentação de programas como o Bolsa Família. Se a gente for olhar as empresas que estão sustentando estes negócios e o tipo de capital que está sendo gerado, a gente logo percebe que não é nem mesmo para o sustento de programas sociais”.

Por isso, a professora defende, em primeiro lugar, que os projetos sejam discutidos de forma transparente com a sociedade. “É preciso pensar e repensar o modo de produção da nossa época. Isso mexe com nosso modo de vida, com elementos do consumo, mas é algo que precisa ser feito. O poder público precisa abrir discussão com a sociedade e isso significa disponibilizar, em primeiro lugar, informações, dar transparência a estes processos. Precisa abrir espaço para controle social, criar mecanismos de democratização efetivos”.

Confira a reportagem no site da Publica, clique aqui. 

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